A filha falha de Eva.
tentativa de aborto, sem sucesso.
nasceu, a primeira filha do mundo.
deixada sozinha no paraíso, enquanto sua única família era expulsa para o nunca.
viu Abel morrer
viu Caim matar
Eva pecar.
Adão perdoar.
a Terra cair.
o céu desabar.
Pandora, filha do fim do mundo.
criada por lobos.
amada pela lua.
surda, cega, sem a ponta dos dedos.
cabelos ruivos, olhos brancos, dentes tom de terra.
cuspia nas folhas, dormia no mar.
paz, pedra e paraíso.
ela sentia as ondas no joelho, o cheiro de sangue dos lábios.
lisa, leve, louca... plana na Terra dos homens.
Terra de homens habitada por uma única mulher.
doce paraíso.
doce sonho, doce terra, doce sangue.
aos 12, nua, rasteja, dança, mata, ama.
não existia medo naquele tempo.
Pandora era deus e o diabo, Pandora era o tudo, o Sol, a lua, o horizonte.
pôs-se a amar um ganso.
depois um pato.
depois o macaco traiu-a, e Pandora percebeu que não ver a ajudava a perceber como tudo que os olhos podiam ver era mentira.
ela se orgulhava de ser cega, orgulhava-se da surdez, mas sonhava que ouvia, e que via, e que tudo, tudo, não podia ser diferente.
Universo, Pandora, Tudo, Deus.
O que mais ela podia pedir?
Aquele era o paraíso, aquele era deus e o diabo, aquele era o Sol, e mesmo sem luz ela sabia que as criaturas iam dormir na fé de um renascer.
que havia renovação ela sabia.
não sabia se o que renascia era de fora, era de dentro, ou era outra mentira de um mundo mudo.
aos 13, ela resolve ir mais fundo. fundo. o que foi, será fundo? o que é fundo? fundo. reconhece? ninguém, nunca, fundo.
três dias subindo.
em cima de uma pedra.
muito vento.
cabelos de brasa esvoassados, soltos, sujos, vermelhos, mas covardes.
embaixo, água, ondas, espuma, fúria, pressa, poder.
poseidon grita de dor. gáia: geme, ri, chora e diz que morte acontece sempre.
Pandora e o alto de um penhasco, esse era o veneno doce que a humanidade devia chorar mais que a cruz.
Respira garota.
um passo pra frente, mais um, perde o equilíbrio...
recupera.
mais um passo, mais um, outro. saltou.
queda-livre.
som de vento.
os olhos ganham cor.
orelhas abrem.
os dedos surgem de um bater de asas.
Pandora viu o mundo por 3 segundos, o que viu era lindo, era verde, azul, amarelo, todas as coras, tinha até brilho.
Ouviu, por mais 3, o que ouvia deixou seu corpo leve, relaxado, calmas ondas, azul, som de raiva e de paz.
e as asas...
bateram, bateram, mas ela caiu.
não sabia voar.
caiu.
não sabia nadar.
caiu.
(som de queda na água)
viu o mar, reflexos de luz no azul, viu criaturas coloridas nadando, viu seu chão escuro, sem fim, sem dó.
afundava.
mais.
mais um pouco.
faltava-lhe o ar.
faltava-lhe o ar de alegria.
Pandora ria, ria tanto, ria alto, "tudo isso".
"EU"
Faltava-lhe o ar.
água nos pulmões.
doeu.
Pandora afundou de olhos abertos.
Asas abertas.
Pandora afunda até hoje.
e tem quem busque o paraíso...
um beijo Pandora.